domingo, 3 de outubro de 2010

Conto: O jardineiro-jardim II

Para Adriana, com carinho, cuidado e intensidade.

“Quer entrar?” – esta foi a frase que ele escutou, numa das muitas andanças que vinha fazendo nas ruas da cidade. Era tudo muito estranho ali. E essa estranheza não se dava apenas pelo convite em si, mas, sobretudo, pelo lugar de onde ele vinha. Numa cidade com exuberamente vegetação, foi um pequeno jardim colorido e maltratado que lhe chamou atenção. Mas como poderia ser chamado por algo que nem mesmo poderia falar? Desviou a atenção quanto ao convite e prosseguiu, como se nada tivessse ouvido, como se fosse um delírio encadeado pelo impacto da beleza do que via – um desejo de que, de fato, fosse possível ser chamado para dentro de um lugar de tamanha beleza, que chamava atenção exatamente pelo contraste em relação ao que costumava ver. Enquanto a cidade era repleta de árvores gigantes e imponentes, aquele jardim lhe mostrava simplicidade e delicadeza, mesmo que, à distância, lhe exibisse austeridade. Sua descrença, porém, logo foi questionada pela repetição do chamado. Tratou, então, de tapar os ouvidos, pois era-lhe difícil acreditar num acontecimento daquele tipo. Continuou, porém, a ouvir o convite, igualmente intenso e, sobretudo, verdadeiro. Percebeu, então, que não se tratava de um delírio e que, ainda mais estranho, não percebia o que lhe aparecia com os simples órgão dos sentidos. O sentido, se havia, era de outra ordem, que lhe instigava a ver sem olhos e ouvir sem ouvidos. A única evidência que lhe guiava era a sensação pulsante de um desejo mútuo, mesmo que não soubesse muito bem de quê. Aproximou-se das plantas de olhos fechados e tocou-as com um misto de cuidado e desejo. Era a primeira vez que percebia a possibilidade da confusa equação entre intensidade e leveza. Era uma mistura confusa entre a suavidade do carinho e a avassaladora voluptuosidade do desejo. Habitava seus olhos, então, uma beleza singular, vista somente por quem se permite a loucura de uma experiência em que se precisa estar embotado de uma miopia para ver melhor, pois tudo lhe parecia nítido. E se lhe perguntassem como era possível, muito provavelmente responderia: “não sei.”. Logo ele, sempre acostumado a dar precisas e rebuscadas respostas e se regozijar por isto, constatava com imensa e inédita satisfação sua incrivelmente bem-vinda ignorância. Descobria, naquele instante, que a ignorância poderia ser sábia e, por que não, um ato de liberdade tão legítimo quanto a mais lógica das equações. Sentia-se cuidado pelas plantas que habitavam o jardim e, em mais um fato único, viu-se cheirado por elas. “A memória das plantas” – pensou – “é olfativa e este parece ser seu jeito de dizer que sou bem-vindo, que posso vir quando quiser.”. Um sentimento de gratidão pelo lugar e seus habitantes inundava-lhe, mas não sabia como expressar isto. Todas as ideias que lhe vinham pareciam pequenas e toscas diante da beleza do que estava vivendo ali. E seria pouco, pelo simples fato de ainda não saber muito bem dar um nome ao que acontecia, pois em tudo aquilo lhe era novo. Chegou, então, à conclusão de que o suave, delirante, intenso e profundo encontro que se produzia ali não era seu, nem do jardim e que portanto não fazia sentido agradecer a ninguém. Passou, então, a contemplar e cuidar como forma de dizer: “quero-te sempre bem cuidado, pois tua beleza e carinho me tornam belo e cuidadoso.”.

Emanuel Meireles

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